Pequenas narrativas cotidianas na ficção de Letícia Palmeira
Nelson Rodrigues, provocativo e polêmico como só ele conseguia ser, costumava dizer que não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos. Letícia Palmeira não parece ser fã de futebol, muito menos da política que vivemos hoje. Mas faz literatura e como boa escritora que é acerta a mão e tira os bons sentimentos de seus personagens neste “cruel” livro “O Porta-Retrato” (Editora Penalux, São Paulo, 2017).
Em tempos de redes sociais, os escritores têm mais seguidores que leitores propriamente ditos. Sou um dos seguidores de Letícia Palmeira no Instagram e no Facebook. Neste último, principalmente, ela costuma construir pequenas narrativas do cotidiano, meio crônicas, meio contos, onde deixa vazar um estilo ácido, irônico e às vezes até seco. Mas quem lê Letícia apenas nas redes sociais nem imagina que aquele estilo econômico pode ser bem mais generoso e detalhista na construção de personagens em contos longos, alguns com uma aura de suspense que só faz prender a atenção do leitor.
“O Porta-Retrato” vem com sete contos, todos com os nomes de pessoas em seus títulos, à exceção do último, que dá título à obra. Todos também cruéis, também bem construídos, também cheios de suspense e surpresas. Letícia deixa entrever, em texto inserido na orelha do livro, que alguns contos se confundem na memória. Biografia? Não dá para acreditar que sim, a se julgar pelo desenrolar das estórias contadas. Mas quem é louco de duvidar da lucidez dos escritores?
Todos os contos seguem uma linha parecida. Diria que não são contos sobre a violência que aflora dentro do ser humano quando confrontado com seus medos. São contos sobre o imprevisível, o desconhecido que existe dentro de nós e que pode nos levar a tomar atitudes que não sabemos existir dentro de nossos gestos.
“Olívia”, o primeiro conto, é bem isso, além de ser um dos melhores da obra. A narrativa, bem construída, mostra Olívia inocente a comprar sapatos na loja; Olívia cismada com um jardineiro inocente, Olívia encantada pelo par de sapatos que passava no corredor, Olívia entediada criando amantes imaginários, Olívia de olho no homem de sapatos esmaltados, Olívia no capacho se masturbando para o homem que passava no corredor, Olívia diante da rival (“víbora nojenta”), Olívia eliminando rivais, Olívia diante de seu homem… Olívia não era má. Os sapatos do seu amado é que eram cruéis com a imaginação de Olívia.
“Bastian”, o segundo conto, fala de um francês que a narradora conheceu quando trocava seu corpo “por alguns miúdos”. Como Olívia do primeiro conto, a narradora também quis Bastian ao primeiro contato. Mas Bastian era casado e gostava de narrar as belezas de sua esposa, um sádico alimentando uma masoquista: “E sempre que precisava me ferir, pois é disto que o amor sobrevive, ele me fazia ouvir gemidos roucos de seu gozo ao lado daquela a quem pertencia. Eu me alimentava deles”. Mas Bastian decidiu morrer e a personagem-narradora foi ao funeral, onde encontrou a esposa de Bastian e o leitor acaba descobrindo coisas além do que imaginava.
“Elisa”, o conto seguinte, é também o que considero o mais fraco do livro, talvez por ser o mais previsível. Por isso, não falarei sobre ele. Falarei sobre o conto “Olavo”, onde os pais são poupados do patrulhamento hipócrita da sociedade graças a tragédia que acometeu o filho. Prefiro tentar entender a estranha “Melinda”, que ditava regra e todo mundo obedecia. Prefiro conhecer “Augusto”, que forma com Cecília um casal que parece saído do filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, ou de “Domingo no Parque”, a canção de Gilberto Gil.
“O Porta-Retrato” é o conto que fecha o livro. Um outro título poderia ser “A estranha história de Verônica e Hermeto”. Tantas dúvidas vão surgindo ao longo da narrativa. Sim, ela queria que só existissem os dois, mas isso parece quase toda mulher apaixonada querer. Hermeto era uma obra-prima para Verônica. Mas ele não ficava atrás e era de Verônica que queria viver. Exilados do mundo, uma pista. Sangue cobrindo o piso, outra pista. Segredos entre os dois. Segredos para os leitores. O trem. A solidão. A loucura. O pecado. Tudo isso num ritmo hitchcockiano que vai alinhavando o leitor até esbofeteá-lo com o desfecho da narrativa.
Vejo na escrita de Letícia Palmeira uma influência de Virgínia Woolf, principalmente na forma como emprega o fluxo de consciência e a psicologia na construção das tramas emocionais de suas personagens. Mas há algo bem Nelson Rodrigues na forma como suas personagens refletem a sociedade. Gosto da tensão que Letícia imprime às suas histórias. Desde a primeira linha do conto, essa tensão já se faz presente. Tudo isso entremeado com reflexões sobre a família e sobre pequenos detalhes do cotidiano que servem para aliviar um pouco a tensão, até sermos fisgados pela trama.
Letícia Palmeira, que ano passado foi uma das organizadoras da coletânea “Ventre urbano”, reunindo textos de diversas escritoras paraibanas, tem um estilo próprio que pouco a pouco vai se impondo no cenário literário nacional. Fiquemos de olho!
Linaldo Guedes
Jornalista e poeta. Nascido em Cajazeiras, no Sertão da Paraíba. Radicado em João Pessoa desde 1979. Como poeta, lançou os livros “Os zumbis também escutam blues e outros poemas” (A União/Texto Arte Editora, 1998), “Intervalo Lírico” (Editora Dinâmica, 2005), “Metáforas para um duelo no Sertão” (Editora Patuá, 2012) e “Tara e outros Otimismos” (Editora Patuá, 2016). Lançou, em 2015, “Receitas de como se tornar um bom escritor”, pela Chiado Editora, de Portugal.
Tem textos e poemas publicados em dezenas de livros lançados no Brasil, incluindo antologias. Sua produção literária e fortuna crítica podem ser acessadas nos seguintes blogues:
Site: https://conversandosobrelinaldoguedes.wordpress.com/