Vandré e o conforto de não precisar ser primavera na arte

O poeta e crítico literário, Hildeberto Barbosa Filho, lembrou uma fala recente do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva para dizer que Geraldo Vandré era uma ideia. De fato, por tudo que representa para a arte brasileira, é a representação de um momento triste na memória do país. Mas precisamos não olhar apenas para a ideia representativa de Vandré. Precisamos olhar sua arte, sobretudo.

Uma boa oportunidade para isso, além de ouvir suas canções, é através do livro “Poética”, originalmente intitulado “Cantos Intermediários de Benvirá” e que foi lançado no Chile, em 1973. A Superintendência de Imprensa e Editora A União, à frente Albiege Fernandes, com o apoio do secretário de Cultura, Lau Siqueira, em boa hora fez a edição e o lançamento desta obra em solo brasileiro.

Sugiro, no entanto, que o leitor não busque na obra o Vandré de “Pra não dizer que não faleis das flores” e de outras canções de cunho político. Não busque o revolucionário, o autor de músicas de protesto. Busquem o poeta de olhar sensível para as coisas do cotidiano. Percebam a musicalidade de seus versos, as redondilhas, as influências da cultura popular, os regionalismos à la Guimarães Rosa e até alguns neologismos.

Não são poemas políticos. Digo políticos no sentido de engajamento, porque há muita reflexão social. Mas há também muito lirismo, o que não surpreende a quem conhece as canções do compositor Geraldo Vandré que não estão vinculadas aos festivais de música dos anos 1960.

E o poeta começa seu livro como se fosse uma moda de viola, falando do seu sonho maduro, das influências do cantador violeiro que cultiva o verso preferido, da morte pelo susto de ter que ser gente. Metafísico, diz no poema seguinte deixar passar o tempo e o saber para levar “Mariana e o seu amor”. Ou então, cantar as campinas verdes e as flores no chão.

Numa espécie de legado poético, diz:

“Não trago prendas

nem lembranças raras,

nem amuletos de festas guerreiras.

Os bens da vida reparti com todos

e muitos se perderam para que eu chegasse.

Vivi contigo as honras do meu tempo

sem moral, além das esperanças

e parto agora porque tenho tempo

e aumentadas as minhas lembranças.

Levo a saudade, antiga companheira,

que contigo outra vez ficou criança,

não tenho mágoas nem ricos presentes

para deixar-te, tenho a confiança

do encontro marginal de outros amigos

que estarão comigo e na distância

me darão amor, calor e abrigo

para que eu possa me lembrar de ti

ser-te fiel e seguir teu amigo”.

Em sua poesia, Vandré vai do reisado à Grécia ou Roma antiga, mas com as raízes bem fincadas nos sertões. É irônico, quando grita: “socorro, a poesia está matando o povo”, quando faz troça com a dicotomia “esquerda-direita”. E sentencia:

“E entre o velho e o novo

ficamos na voz do povo,

pequenos como sabemos

imensos como queremos”.

Há os recados no livro, em forma de poemas. Como aqui:

“Não bastava escutar

o galo acordar

dos meus enganos,

era preciso alterar

meus vinte anos

com um, com dois,

com três e mais problemas

solúveis pela vida afora

e dentro da casa

foi marcada a hora

do precisar.

Mais que do branco

da montanha

era preciso saber

andar nas cores todas

a não se perder”.

De um poeta que já foi rei e fala em voltar um dia, não poderia faltar o lirismo, afinal Vandré sabe que “amor e poesia vão além da fantasia”:

Um caminho de amor

a partir do que não foi

vou descobrir e seguir,

substantivamente,

pra poder viver.

Se a frustração se fez então pra mim

que tudo quis que assim não fosse

a razão fundamental para lembrar,

eu vou te amar a partir da restrição

no que foi guardado, negado e recusado, povo amado,

ao conviver da gente

se nem mais posso cantar

eu vou te amar

em tudo que deixar de ser contente”.

Ou esta reflexão:

“Posso internar-me

singularmente

nos mistérios

de uma solidão

que compete

exclusivamente

a cada um em separado.

Porém decididamente não quero

e aí está

o motivo claro

do poema inverso

que vivo a escrever

e que me dá amparo

pra poder dizer

que o eu

não existe sem você”.

A poesia de Geraldo Vandré é dolorosa, às vezes. Não há uma desesperança completa porque ele vê no homem simples o caminho para a redenção. É uma poesia com um tom de protesto. Mas um protesto de deboche, não agressivo, não liricamente explícito. Lembra, às vezes, alguns poemas de Brecht de contestação ao nazismo. Só que aqui, em Vandré, o tom é de protesto implícito, de quem está dizendo tudo sem querer fazer a revolução.

Como ele diz em um dos poemas:

“Silencioso parto do meu morto

não conto mais estórias e sem querer saber do justo ou natural

vivo do conforto de não ter que ser primaveral”.


Linaldo Guedes

Jornalista e poeta. Nascido em Cajazeiras, no Sertão da Paraíba. Radicado em João Pessoa desde 1979. Como poeta, lançou os livros “Os zumbis também escutam blues e outros poemas” (A União/Texto Arte Editora, 1998), “Intervalo Lírico” (Editora Dinâmica, 2005), “Metáforas para um duelo no Sertão” (Editora Patuá, 2012) e “Tara e outros Otimismos” (Editora Patuá, 2016). Lançou, em 2015, “Receitas de como se tornar um bom escritor”, pela Chiado Editora, de Portugal.

Tem textos e poemas publicados em dezenas de livros lançados no Brasil, incluindo antologias. Sua produção literária e fortuna crítica podem ser acessadas nos seguintes blogues:

Site: https://conversandosobrelinaldoguedes.wordpress.com/

Site: https://linaldoguedes.wordpress.com/

E-mail: linaldo.guedes@gmail.com


Edição: Josy Gomes Murta

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