Médicos que devolvem visão a ribeirinhos na Amazônia vencem prêmio de R$ 4,6 milhões
Médicos voluntários de todo o país atuam em campanhas comunitárias, mutirões e atendimentos de rotina nas periferias paulistanas. Iniciativa trata deficiências visuais na região que tem 4 oftalmologistas para 2 milhões de habitantes
Responsável por 85% das informações processadas no cérebro, a visão é um dos sentidos mais importantes do corpo humano. Moradores de regiões periféricas ou afastadas, no entanto, não contam com atendimento oftalmológico acessível e sofrem com uma cegueira que em 75% dos casos poderia ser prevenida ou curada, de acordo com o Conselho Brasileiro de Oftalmologia.
Foi a constatação desse descaso público sobre os olhos das populações de maior vulnerabilidade social que motivou os docentes do Departamento de Oftalmologia da Unifesp a criar o Instituto da Visão – IPEPO na década de 1980. Sua missão é combater a cegueira evitável em São Paulo e em áreas rurais remotas e desassistidas.
Desde então, médicos voluntários de todo o país atuam em campanhas comunitárias, mutirões e atendimentos de rotina nas periferias paulistanas e, desde 2005, examinam e operam moradores de regiões remotas da Amazônia, em expedições feitas duas vezes ao ano. O resultado foi rápido e maior do que o esperado: apenas nos últimos cinco anos, o IPEPO realizou mais de 2 milhões de consultas e 100 mil cirurgias oculares gratuitas em todo o território brasileiro.
Esses números garantiram a conquista do Prêmio Champalimaud de Visão —maior prêmio do mundo na área de oftalmologia e que acontece uma vez a cada dois anos. Em meio à desigualdade social e às falhas da saúde pública de países em desenvolvimento, a premiação reconhece trabalhos que previnem e combatem as deficiências visuais nestes países. Anunciados recentemente, os vencedores da última edição do prêmio português são todos brasileiros.
Ao lado do IPEPO, os outros dois projetos premiados são a Fundação Altino Ventura e o Serviço de Oftalmologia da UNICAMP. Além do reconhecimento internacional, as organizações receberão 1 milhão de euros (R$ 4,6 milhões) para expandir e aprimorar seu impacto social.
Impacto e medicina de primeiro nível
Há dez anos, o IPEPO optou por dar ênfase à Amazônia em sua atuação. Por meio do Oftalmologia Humanitária —projeto de parceria entre a Universidade Federal do Amazonas, o Instituto da Visão – IPEPO, a Fundação Piedade Cohen e a Marinha do Brasil—, médicos voluntários devolvem a visão de moradores das comunidades ribeirinhas desprovidas do serviço público de tratamento oftalmológico.
Algumas das regiões visitadas pelo projeto não têm nenhuma unidade de atendimento especializado em visão num raio de 150 km. Quando muito necessitados, moradores de municípios próximos à fronteira Brasil-Colômbia recorrem a clínicas particulares do país vizinho.
De acordo com um levantamento feito pelo Instituto, enquanto existem 158 oftalmologistas em Manaus para 1,8 milhão de habitantes, o interior do Amazonas conta com apenas 4 profissionais para 2 milhões de pessoas. Com o apoio da Marinha, a equipe viaja pelo trajeto majoritariamente fluvial por meio do Soares de Meirelles, embarcação de quatro andares que abriga os voluntários e os equipamentos de última geração, doados por empresas.
Mesmo sem receber pagamento algum, o uso da tecnologia médica mais avançada é prioridade para os médicos, que oferecem uma medicina de primeira linha àqueles que nunca sequer passaram por um simples teste de acuidade visual.
Quem conta estes detalhes sobre a iniciativa é Rubens Belfort Junior, 73, oftalmologista da Escola Paulista de Medicina e atual presidente do Instituto da Visão. Para Belfort, não há diferença de tratamento entre os pacientes de São Paulo e os que viajam por oito horas de barco para entrar na fila do atendimento gratuito. Em ambos os casos, os médicos, aparelhos, remédios e técnicas operatórias são os mesmos.
Até as lentes intraoculares utilizadas nas operações de catarata durante a expedição são as mesmas de pacientes dos hospitais Albert Einstein e Sírio Libanês. “A gente tem apoio para isso, nossos cirurgiões são os mesmos que operam nesses lugares. Então, é primeiro nível de medicina”, afirma o presidente.
Além das cirurgias gratuitas que recuperam, em 30 minutos, a visão dos que há anos não enxergavam, são também doados cerca de 5.000 óculos de grau a cada expedição, graças à parceria do Instituto com a Lupas Leitor.
Para saber o tipo e o grau da lente que deverá utilizar, o paciente é submetido a um teste de acuidade visual desenvolvido pelo IPEPO.
Feito para familiarizar à oftalmologia os amazonenses que nunca haviam sido examinados, o teste substitui as tradicionais letras de tamanhos variados por um quadro com nomes de peixes típicos da região.
Uma nova forma de ver o paciente
Belfort conta que, embora a miséria dos pacientes ribeirinhos seja semelhante à que se encontra nas periferias paulistanas, a situação na Amazônia é muito mais dramática. “Você tem pacientes que, para conseguir um óculos, andam oito horas de barco e depois entram na fila do SUS de alguns meses.
Tudo isso para um óculos, uma cirurgia de catarata”, explica o médico. Na última expedição, em abril deste ano, os voluntários do IPEPO operaram Luís Costa, um homem de 102 anos de idade que não enxergava nada há meia década devido à catarata que desenvolvera.
O centenário foi levado de sua casa afastada ao centro cirúrgico e teve os olhos operados em dias diferentes, por conta dos riscos de se submeter a uma cirurgia em idade tão avançada. Mas, para a surpresa dos médicos e da família, o paciente logo após a cirurgia já estava enxergando tudo e todos novamente e irradiava felicidade pelo hospital. “E a família inteira em volta dele, todos chorando, porque de repente o velhinho conseguia ver todo mundo”, relata o presidente do Instituto, emocionado.
Outro caso que marcou o médico foi o de um casal atendido em 2017, em que ambos sofriam com a catarata.
Após a dupla cirurgia, o marido e a mulher se emocionaram quando olharam um nos olhos do outro novamente —coisa que não faziam há dez anos. Para o presidente do Instituto, que há meio século participa de iniciativas de medicina humanitária, essa é sem dúvidas uma das melhores sensações que um médico pode sentir com seu trabalho.
“É gente que está há anos sem enxergar, um não via o outro, e você em uma cirurgia de meia hora consegue mudar isso. É muito melhor pra nós do que pra eles. É o sonho da realização profissional da gente.”
O futuro do projeto milionário
Com os milhões conquistados no Prêmio Champalimaud, o IPEPO pretende expandir os programas voltados à periferia da capital paulista, com ênfase na diabete ocular.
Em relação à Amazônia, os planos são ainda mais ambiciosos. Além de aumentar as áreas de impacto, os docentes querem também investir no combate a uma doença pouco valorizada e muito comum no interior amazônico, o pterígio.
Conforme estudos recentes do Instituto descobriram, há comunidades amazônicas em que 60% da população apresenta a doença, e grande parte desenvolve a cegueira. “Para combater isso precisamos, é claro, de patrocínio e apoio internacional, por isso o prêmio ajuda muito”, diz o médico.
Muito mais que o milhão de euros, Belfort acredita que a conquista possibilitará novas parcerias com instituições ainda maiores, o que é fundamental para que o projeto alcance, aos poucos, todos os pequenos municípios amazônicos e comunidades afastadas, que também apresentam problemas sérios de visão e têm direito ao tratamento de qualidade.
Com informações: Folha de S.Paulo