A memória do vinho

A Semana Santa há de ser sempre tempo de lembrar as lições cristãs mais duras. Justamente aquelas que recusamos praticá-las. Falo daquelas que Jesus Cristo praticou com altivez e resignação, como sacrificar-se pelos seus semelhantes. Ou expulsar os vendilhões do templo. Ou desafiar alguém a atirar a primeira pedra se não tivesse pecado. Quem há de dar a outra face ao ser agredido, num tempo em que a vingança faz parte da personalidade humana cada vez mais?

Eu vi, esta semana, alguém dar a outra face, ou, pelo menos, não revidar. Agredido por um motoqueiro possesso no trânsito da capital, um senhor taxista ficou apenas parado dentro do seu veículo. Apenas olhando a estupidez humana quebrando os retrovisores do seu táxi com um capacete, sem esboçar qualquer tipo de reação. E o motoqueiro com certeza não lembrava que
estávamos na Semana Santa e agiu, no trânsito, como os soldados agiram diante de Cristo. O trânsito, aliás, parece muito com o calvário de Cristo a caminho da cruz. Somos agredidos diariamente por estressadinhos, por buzinas fora de hora, por motoristas irresponsáveis.

O bom é lembrar do passado. Lembrar das Semanas Santas passadas na casa da mana Nenem. “Quer vinho, venha”, era a máxima brincada por todos nas calçadas de Antônio. Com Laura,
Ildevar, Tio Vicente, Luciano, Pedro… Tempo em que o peixe era sagrado, não apenas para os pecados da gula. Como se estivéssemos na Roma ou Grécia antiga, em rituais de paz, alegria
e confraternização. Não foi dessa época que veio a lembrança de um tio e um cunhado mortos de forma brutal, estúpida, cujos assassinos até hoje estão impunes. Dessa época guardo apenas a
memória do vinho e da paz em família.

Mas atire a primeira pedra quem nunca pecou, eu dizia. Difícil alguém ter coragem de fazer isso. Todos pecamos, sim, se é certo a definição de pecado que está na Bíblia. Mas pecamos
principalmente pela forma como agimos no dia-a- dia. Vejo tantos religiosos, que frequentam cultos e missas intolerantes, preconceituosos, arrogantes, egoístas. Essas pessoas são aparentemente cristãs. Pregam a palavra de Deus e adoram condenar os outros. Pior é que elas se impõem na sociedade pelas atitudes que alardeiam praticar, não por causa das que pratica de
fato. Porque a enganação parece ser a tônica da sociedade moderna.

É hora de refletir sobre o simbolismo do calvário de Cristo. Valeu a pena? Estamos compensando todo o sofrimento de Cristo à caminho da cruz? Não acredito. Melhor tomar um vinho em família, na ausência de respostas. Beber o sangue de Cristo para aprender a não espalhar sangues pelo mundo afora. Ficar com a lembrança do pai, que se foi numa sexta-feira da Paixão. Lembrança que fortalece toda uma família que o amava muito e venerava seu exemplo de dignidade e grandeza.


Linaldo Guedes

Jornalista e poeta. Nascido em Cajazeiras, no Sertão da Paraíba. Radicado em João Pessoa desde 1979. Como poeta, lançou os livros “Os zumbis também escutam blues e outros poemas” (A União/Texto Arte Editora, 1998), “Intervalo Lírico” (Editora Dinâmica, 2005), “Metáforas para um duelo no Sertão” (Editora Patuá, 2012) e “Tara e outros Otimismos” (Editora Patuá, 2016). Lançou, em 2015, “Receitas de como se tornar um bom escritor”, pela Chiado Editora, de Portugal.

Tem textos e poemas publicados em dezenas de livros lançados no Brasil, incluindo antologias. Sua produção literária e fortuna crítica podem ser acessadas nos seguintes blogues:

Site: https://conversandosobrelinaldoguedes.wordpress.com/

Site: https://linaldoguedes.wordpress.com/

E-mail: linaldo.guedes@gmail.com


Edição: Josy Gomes Murta

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