O que a Vida Religiosa ainda pode fazer hoje?

Por Pe. Ademir Guedes Azevedo

* Tributo as irmãs Ana Vicência (passionista) e Maria De Coppi (comboniana)


É evidente o empenho diário do Papa Francisco por um cristianismo como comunidade de memória do Evangelho. Mas tudo isto tem um grande preço: solidão, incompreensão e perseguição. Na verdade, em toda a história quem ousou seguir o Evangelho de Jesus teve que fazer as contas com a fúria do mundo. Francisco é uma voz que grita e faz ressoar os valores sólidos da Sequela Christi: a paz entre os homens, a justiça para não deixar cair no esquecimento os pequeninos do Reino, o anticlericalismo, a pobreza como estilo de vida na Igreja, a sinodalidade inclusiva e não apenas uma escuta infértil das partes envolvidas, mas o protagonismo pessoal e comunitário.

Neste contexto, a Vida Religiosa Consagrada (VRC) é tomada por uma questão crucial: o que estamos fazendo para colaborar com este projeto de Igreja e como nos situamos neste Evangelho tão ousado e comprometedor para a nossa vocação?

Narro a atuação missionária de duas religiosas que viveram em contextos diferentes e que convergem numa fascinante entrega a este Evangelho que aqui tentamos ilustrar. Em seguida, colheremos algumas conclusões em forma de provocações para a vida religiosa hoje.

Maria De Coppi

A primeira história é da irmã Maria De Coppi (1939-2022) que trabalhava na África desde 1963. Missionária comboniana, nascida na Itália, partiu ainda muito jovem a Moçambique, país no qual tornou-se cidadã. Muito empenhada na pastoral e próxima de sua gente (diocese de Nampula), a irmã acompanhou todo o processo histórico que fez de Moçambique uma terra “independente” de Portugal. As várias guerras, a fome, a seca, o desemprego foram apenas algumas das muitas realidades que a religiosa experimentou junto do seu povo. No entanto, nada disso lhe distanciou do seu primeiro amor: resistir sempre, oferecer esperança, consolar os que choram e acreditar que o novo virá.

E foi justo esta opção que a levou a permanecer em sua missão diante dos recentes ataques terroristas que o norte de Moçambique vem enfrentando. Alcançada pelos assim chamados grupos “insurgentes”, a comunidade da irmã (Chipene) foi totalmente destruída: casa, escola, os carros dos missionários; tudo que foi construído com anos de esforço e sacrifício tornaram-se cinzas em uma única noite de terror e pânico. Em meio a gritos de desespero a irmã, como sempre firme, vai ao encontro das demais companheiras para que escapem, mas foi justo neste seu movimento de encontro que ela foi brutalmente assassinada com um tiro à queima-roupa. Ali estava mais um rosto, uma história concreta totalmente doada e transformada em semente de vida, quando do seu sangue jorrado por terra.

Ana Vicência

Ana Vicência (1954-2022), missionária passionista. Pude conhecê-la pessoalmente ainda na fase de minha infância. Eu vi e toquei o mistério de Deus na vida dessa mulher franzina, baiana, afável, madura, ousada, arrojada, materna e, sobretudo, profética. Sim, uma mulher que ao longo da vida tornou-se uma memória subversiva da Paixão de Jesus por onde passou. Soube irradiar esperança e apontar caminhos alternativos para uma vida mais digna.

É inesquecível seu labor incansável com as meninas de rua da casa de acolhida Talita Kum, localizada em Goiânia/GO. Aliás, o que o nome desta comunidade sugere na verdade acabou sendo o programa diário que se refletia nos gestos dessa religiosa: permitir que todos estejam de pé, em postura de igualdade, de cabeça erguida e olhar focado no horizonte. Ali na Talita Kum foi palco de lutas travadas pela irmã com autoridades políticas e com aqueles que sentem dificuldade em enxergar Deus nas várias histórias de quem é mal-visto e tido por indigno moralmente. Na vocação desta missionária passionista o que se assiste é apenas a visibilidade daqueles que viveram sempre nas margens, que durante boa parte da vida tornaram-se socialmente invisíveis.

Fiel ao carisma de Madalena Frescobaldi a irmã Ana nunca deixou de encarnar na história a utopia perigosa do Reino de Deus, aquela que parte das bases, elevando os fracos e, com eles, construir uma vida boa e digna para todos. Mulher-Ação: essa é a melhor definição que me vem à mente neste momento. Mas uma ação refletida que nega aquilo que no presente não anda bem, para só assim recorrer ao agir de Jesus e propor a melhor alternativa que nos faz trabalhar no presente e construir um futuro mais humano.

Será que a bala que ceifou a vida da irmã Maria De Coppi e a enfermidade que interrompeu a trajetória da irmã Ana vão permitir que o legado e a honra delas sejam esquecidos por nós hoje? Tomara que as novas gerações gravem esses dois nomes – projetos evangélicos – em seus corações! Retomo a pergunta acerca do que a vida religiosa ainda pode fazer hoje. Parece que no contexto atual de Igreja e de mundo o que mais interessa são os gestos.

A vida consagrada existe para quê?

A pós-modernidade já se despediu dos grandes discursos, agora é o tempo da ação. Neste sentido, a vida consagrada existe para quê? Quais são as preocupações que preenchem as nossas pautas hoje? Construções, acúmulo de capital? A periferia entra em nosso horizonte de apostolado ou ainda reina a doce ilusão de retornar às velhas estruturas que não podem ser mais habitadas como antes?

Tudo indica que a vida pede outras exigências a nós consagrados, mas estamos na escola de discernimento que o papa Francisco vem insistindo ultimamente? Parece-me que deveria ser próprio da Vida Religiosa entregar tudo de si e permitir que Deus escreva a sua vontade nas linhas de nossas vidas. Só assim, e não de outra forma, será possível tecer algo novo de nossas vidas tão frágeis, como aconteceu com na trajetória das duas missionárias que aqui quisemos prestar nossa singela homenagem.

Ana Vicência e Maria De Coppi, presente!


Pe. Ademir Guedes Azevedo

Paraibano. Padre, missionário passionista (pertencente à Congregação da Paixão de Jesus Cristo). Mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.


Edição: Josy Gomes Murta


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